Bens de valor patrimonial
deixados ao abandono, promotores que se permitem apresentar
projectos lesivos, legislação que oscila entre a omissão e a
permissividade, cidadãos que não conseguem encontrar interlocutor
nos organismos do Estado ou da administração local, vozes
qualificadas a "clamar no deserto" há largos anos - como um filme
que se repete, a anunciada conversão do Colégio dos Inglesinhos em
condomínio fechado encontra paralelismos numa longa sucessão de
casos idênticos.
No debate que, segunda-feira à noite, se
realizou por iniciativa do Forum Cidadania Lisboa e do Centro
Nacional de Cultura (CNC), Gonçalo Ribeiro Telles lembraria alguns
desses casos - da destruição das quintas do Paço do Lumiar ao vale
de Chelas - e aquela que considera ser a raiz deste quadro
recorrente da estrutura natural à memória da cidade, "tudo se
transformou numa 'área de oportunidade' porque tudo está à venda'".
Perdas sucessivas "de que seremos responsabilizados", como referiu,
por seu lado, o olisipógrafo José Luís de Matos, e cuja sistemática
repetição "nos mostra como Portugal tem do património uma visão
terceiro-mundista", na expressão de Matilde Sousa
Franco.
Pela voz da directora municipal de Reabilitação
Urbana, Mafalda Magalhães Barros, e de técnicos da Unidade de
Projecto do Bairro Alto e Bica, a assistência que lotou a sala do
CNC ficou a saber que, na sua primeira versão, o projecto da Amorim
Imobiliária "esventrava por completo" o interior dos Inglesinhos.
"Recusando ver-se no banco dos réus" pela luz verde que o
empreendimento obteve da autarquia e do Ippar, os mesmos técnicos
consideraram que, não fôra a sua "luta e duras reuniões com o
promotor", o projecto não teria conhecido as "três ou quatro
versões" que teve até hoje. "Movemos Céu e Terra para que o promotor
o alterasse", referiu Helena Pinto Janeiro, historiadora daquele
gabinete, "num movimento inédito no seio da Câmara de Lisboa, para
que se salvaguardasse o máximo de elementos de valia patrimonial, e
conseguimo-lo - o Colégio dos Inglesinhos não será destruído nem
descaracterizado e o essencial será preservado".
As
afirmações do Gabinete do Bairro Alto não chegam, no entanto, para
apaziguar a apreensão dos moradores que têm contestado um projecto
cuja finalidade já mudou várias vezes - de "clube residencial para
idosos acamados" a "loteamento de luxo", guindado, mais
recentemente, a "intervenção-modelo de recuperação de património",
na linguagem promocional do mercado imobiliário. Para o cineasta
José Fonseca e Costa, há razões para essa apreensão, seja pela
"ausência de diálogo", seja pelos "pormenores inquietantes que a
consulta do processo forneceu". Na mais nova versão do projecto, "os
pontos mais agredidos serão os jardins e a ala virada à estreita Rua
Nova do Loureiro", onde surgirá um novo corpo, servido pela abertura
de vãos no muro de contenção atribuído a Carlos Mardel.
"O
que verificamos", referiu o arquitecto Raul Hestnes Ferreira, "é que
a intervenção aprovada nada tem a ver com as três únicas acções que
se podia ter nos Inglesinhos - restauro, reabilitação,
beneficiação". A interposição de uma providência cautelar, em
apreciação em tribunal, não teve, até ao momento, efeitos práticos
no terreno "A obra prossegue, sendo já vários os elementos
demolidos".
O facto de "tudo isto ter sido aprovado sem
consulta pública" constituiu, para a generalidade dos presentes,
outro motivo de perplexidade, tanto mais que intervenções em zonas
históricas requerem cuidado extremo. A necessidade de equipamentos
que sirvam a comunidade seria, de resto, várias vezes sublinhada e
apontada como a via mais adequada ao perfil do imóvel. A actriz
Silvina Pereira lembraria, a propósito, aquele que poderia ter sido
o uso mais condizente com os Inglesinhos o de extensão natural do
Conservatório Nacional - há muito a braços com graves problemas de
espaço -, caminho que "várias vezes foi tentado" sem sucesso. |